2006-07-10

Uma bebedeira de Teatro

Berthold Brecht assistiu a vários horrores que a História condenou (os genocídios de Hitler e Estaline), mas que continua hoje a repetir. Por isso, foi sempre um não-alinhado politicamente, sem que tal opção jamais o tivesse impedido de ser sempre um defensor das classes trabalhadoras. Se outras razões não houvesse, há uma que justifica o facto de ser cada vez mais importante encenar (e ver Brecht): para além de se aprender com os seus textos universais e com os seus trabalhos de dramaturgia é, sobretudo, na diversão que ele coloca a tónica das suas mensagens. Muitas das personagens (e não só na Boda) são ridículas e, por isso, risíveis, carregando em si o dramático e o cómico roubados à Commedia dell’ Arte.
Como acontece na Boda dos Pequenos Burgueses, levada à cena pelo Theatron, já com diversas récitas no momento deste curto apontamento, há a intenção de mostrar ao público os seus próprios erros, as suas misérias e (poucas) grandezas. O desmantelamento dos móveis do cenário, firmes e coesos apenas de forma aparente, remete-nos metaforicamente para a hipocrisia e falsidade de uma determinada classe social e para a pouca consistência das relações entre os pequenos burgueses da peça, amigos do casal recém-unido pelo matrimónio mas a quem tudo falta para ser feliz: o pai/sogro, paralítico e dependente, incomoda com as suas inoportunas intervenções, muitas vezes sem qualquer ponto de contacto com o presente; a mãe/sogra mostra-se (ou finge estar) continuamente alheada dos conflitos vividos por aquele grupo de pessoas; a irmã/cunhada tem como objectivo na vida apenas passar alguns bons momentos com amigos homens; finalmente, os amigos vivem em permanente conflito e a sua transparência só se torna possível depois de vários copos de vinho e ponche - “Vamos beber mais um copo” poderia ser quase um mote a que todos vão reagindo prontamente, para celebrar, para esquecer ou, apenas, para manter o estado de alienação do qual preferiam não sair.
Dentro desta curta, mas forte, história de Brecht, muitas estórias pessoais se entrecruzam durante o jantar, deixando cair por terra os véus que cobrem as personagens, revelando as suas mais contraditórias duplicidades e angústias. Ao chegarem ao final, desnudam-se por completo perante um público que acompanha, em tempo real, esta história que poderia ter sido escrita… ontem mesmo. A Boda não será mais que um reality-show avant la lettre, só possível na genial capacidade criativa e visionária do dramaturgo alemão.

A Associação Theatron que, corajosamente, levou à cena esta peça, tem os actores certos para as personagens certas. A encenação de Hugo Sovelas é cuidadosa e, o que é pouco habitual nestas produções de amadores, democrática. A preocupação foi – e continuo no campo das meras conjecturas - que cada actor compusesse livremente a sua personagem, dados que foram, decerto, os limites. (O Hugo costuma confiar nos seus actores.) É mais um excelente trabalho deste jovem actor/encenador que permitiu composições fantásticas de um elenco que funcionou com base numa profunda empatia e para quem Teatro é sinónimo de Prazer. Sem prejuízo dos restantes actores, destaco as excelentes interpretações de um quase estreante, mas magnífico, António Coelho (foram buscá-lo ao Berliner?) e dos veteranos Bernardino Samina, João Macedo e Zara Sampaio que, neste registo de tragicomédia, nos trouxeram, talvez, as composições mais densas e elaboradas da sua carreira.
À pergunta sacramental que precede cada nova encenação, que Boda e que Brecht para os dias de hoje, e, neste caso, para uma cidade portuguesa chamada Montemor-o-Novo, Hugo Sovelas, Maria João Crespo (responsável pela adaptação do original) e aquele núcleo de actores deram a resposta certa: a decadência daquele grupo de pessoas é o espelho da nossa própria decadência. Quer se aceite ou não.

João Luis Nabo

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