2008-02-25

A Farsa de São Pascoal

Bernardino Samina, seria impensável começar este breve apontamento de outra forma, criou no dia 23 de Fevereiro, no Cine-Teatro Curvo Semedo, em Montemor, uma personagem de difícil interpretação. Talvez a mais complexa da sua carreira de actor amador. Um risco que durou 90 minutos, resultado de um incomparável acto de coragem (e de consciência artística) e que teve o apoio, em palco, do restante elenco do THEATRON.

O preso/idiota/espertalhão PASCOAL, a personagem principal da comédia Farsa em São Bonifácio, um texto de autor anónimo adaptado por Maria João Crespo para esta produção do Theatron, veio recuperar, de certa forma, a tradição que vem do teatro vicentino, na figura do bobo, trazendo-me também à memória a personagem do jester, tão fascinante quanto perturbadora, figura fundamental em muitas peças de Shakespeare. Às duas figuras tudo era permitido pelo simples facto de serem, digamos assim, os idiotas de serviço.

Foi neste paradoxo que residiu todo o desenvolvimento da trama a que assistiu uma sala quase cheia: a figura com mais poder, o detentor de todos os segredos era, afinal, o mais humilde dos homens, o aparentemente menos brilhante em termos intelectuais, o sem-família e sem-tecto, o… parvinho da aldeia. Contudo, Pascoal, consciente das suas necessidades, observador e intérprete atento dos vícios e das misérias dos outros, fez da sua condição de marginal a origem dessa esperteza. Conseguiu, assim, usando de estratagemas que nos fazem lembrar os das personagens vividas pelo saudoso actor António Silva, dominar todos os outros elementos daquele grupo, atormentados com defeitos e vivências passadas que não queriam ver regressar. O idiota de serviço transformou-se, graças à sua inteligência, e à natureza humana, na voz da consciência de cada um.

Todo o elenco merece o nosso aplauso. Mas Bernardino Samina esteve incomparável: na géstica, na voz, nos apartes e, sobretudo, na componente trágica que conseguiu manter de forma constante na interpretação da sua personagem, mesmo quando arrancava do público as gargalhadas mais espontâneas.

João Luis Nabo

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