2009-05-31

Público enganado nas In(e)vasões de Carlos Cebola

Se Bertolt Brecht tivesse passado o serão de ontem no Cine-Teatro Curvo Semedo, sentir-se-ia vítima da sua própria receita e teria dito: "Este Carlos Cebola é um jovem criador que sabe do ofício." Se Roland Barthes tivesse dado igualmente uma volta por lá, era capaz de ter concordado com esse mestre do teatro alemão, falecido em 1956. Se outros autores e técnicos de literatura e do drama pudessem ter visto e ouvido o mais recente texto para teatro de Carlos Cebola - In(e)vasões -, iriam querer tirar dividendos das múltiplas influências que afirmariam ter tido na escrita do autor.

Se o texto literário, tal como refere Barthes, é um entretecer de inúmeros textos, palimpsestos impossíveis de distinguir, produto de uma sobreposição de culturas e de conhecimentos - e segundo outros especialistas é por isso mesmo que nada é original -, o autor da peça ultrapassou essas teorias e colocou actores e texto a um nível dramatúrgico que, aparentemente de difícil execução, resultou numa perfeita lição de teatro. E nada mais modernista do que pôr o texto a falar dele próprio, os actores a comunicarem como seres humanos e não como seres de papel decalcados num cenário, com a encenação a ajudar, dando esta ênfase a um equilibrado misturar de tempos, de épocas e de ritmos. Assistiu-se ao teatro a prestar uma homenagem a si próprio, piscando o olho direito ao público, que se entregou ao jogo desde o primeiro momento, e o esquerdo a Brecht (desculpem a insistência), um dos primeiros a escrever e a encenar um tipo de representação teatral que, de quando em vez, tornasse o espectador consciente de que o que via não era mais do que uma representação.

Mas a peça, logo definida de início com um “exercício”, vai muito longe, muito para além desse humilde desiderato. O carácter metaliterário e provocador de In(e)vasões torna-se visível de imediato quando, perversamente, as personagens se tratam pelo nome próprio dos actores, situação improvável num texto clássico. Sabemos que o transtornado Hamlet nunca se chamou em palco Laurence Olivier ou Kenneth Branagh, nem a calculista Lady Macbeth responderia pelo nome de Sarah Bernhardt.

Que o Theatron tivesse sabido dar vida às palavras de Carlos Cebola, já eu calculava que era possível. Que Vítor Guita, a respirar o pó do palco uma vida inteira, seja um especialista nas encenações daquele autor de Niza, naturalizado montemorense, também foi uma constatação. Que Maria João Crespo manifeste perfeito conhecimento das capacidades e limites dos seus colegas actores da Associação Theatron, foi igualmente fácil de perceber. O que me deixou profundamente fascinado foi Carlos Cebola, com mais de sete décadas de vida, ter concebido um texto com uma estrutura que parece ter saído da mais moderna escola europeia (ou americana) de guionistas, mostrando de forma inteligente, como aliás é hábito, o seu espírito rebelde e desafiador das normas para, imaginem, enganar o público, fingindo dizer a verdade, fazendo lembrar, ao de leve, um certo texto de Almeida Garrett.

Avisado pelos actores-personagens, por mais do que uma vez, que não iria assistir à representação de uma peça de teatro, pois não viu o público outra coisa, com os nomes das personagens a confundirem-se maliciosamente com os dos actores, com Montemor ao fundo, em imagens, ouvindo referência aos nomes dos sítios e das ruas no decorrer da “narrativa”. Um “simples exercício” não pode ter a profundidade que o texto foi revelando aos poucos, em crescendo e com um fantástico e propositadamente ofensivo anti-climax. O recheio, fundo e espesso, do qual a caneta (agora o teclado) de Carlos Cebola nunca abdicou nestas largas décadas de escrita, esteve lá, mais uma vez mostrando o Homem como o centro da intriga, mas simultaneamente como o último reduto da esperança, o lugar derradeiro onde pode haver solução para os seus problemas, uns mais metafísicos, outros de pura condição humana.

E a lição que tirámos desta vez (se é que era esta a intenção do autor, a de nos dar uma lição) é a continuação do que já sentimos em alguns dos seus textos dos anos 50/60 (Três Tardes de Três Outonos, A Cigarra e a Formiga, A Acácia no Quintal ou Quinto Mandamento) e noutros mais recentes (João Cidade e Tamar): para o dramaturgo, nada é completamente branco, nada é completamente preto. Há sempre que dar lugar ao cinzento. Ou a outra cor qualquer. É isto, para além daquilo que já escrevi e do muito que fica por dizer, que faz de Carlos Cebola um autor modernista, tendo-o já começado a ser, avant la lettre, há mais de meio século.

Afinal de contas, o público foi enganado. Disseram-lhe que não ia ver teatro e afinal foi obrigado a ver um texto de qualidade concretizado em palco por um grupo de qualidade.

Há enganos felizes.

João Luis Nabo

http://maradodasideias.blogspot.com/

5 comentários:

Cloreto de Sódio disse...

Obrigado pela publicação do meu texto. Merecem-no o Prof. Carlos, o Prof. Vítor, a Maria João e os fantásticos actores que hoje vão voltar a enganar o público com o mesmo sucesso. Um abraço para todos.

Anónimo disse...

Fantástico exercicio... é este o caminho... inteligência e coerência.

Anónimo disse...

Fantástico exercicio... é este o caminho... inteligência e coerência.

Anónimo disse...

Excelente exercício e a imagem muito bonita. Concordo que façam outro tipo de peças, para não serem só comédias. Parabéns. Continuem.

Manuela disse...

Fotos atrasadas mas aqui estão:

http://www.flickr.com/photos/26366986@N05/

E parabéns mais uma vez, por mais uma excelente peça. Nada que não estejamos já habituados.

Beijos